Sereia Tubarão-Tigre
Fuvahmulah é a terceira maior ilha das Maldivas, localizada em um dos pontos mais ao sul do país que é formado por mais outras 1196 ilhas. Ela é considerada não somente um dos lugares mais bonitos do país tanto por moradores quanto por turistas, mas também um verdadeiro paraíso para mergulhadores profissionais e pesquisadores. O motivo do destaque logo se torna aparente: o local é um verdadeiro "santuário de tubarões", além de outras espécies tais como as mantas, apresentando um cenário quase único em todo o mundo onde diversas espécies desses animais podem ser encontradas em grandes quantidades a poucos metros do litoral, em certos casos durante todo o período do ano.
Dentre as espécies que compõem essa rica fauna local está o seu destaque, o Tubarão Tigre, criando uma oportunidade exclusiva de acesso ao animal normalmente habitante de águas tropicais de mais difícil acesso. Por meio de centros de mergulho, tais como o Fuvahmulah Scuba Club, é possível agendar, organizar e realizar mergulhos controlados no local, onde mergulhadores de todo o mundo se deslocam pela oportunidade de fotografar, filmar, ou mesmo apenas estar perto da espécie por alguns minutos.
A razão da presença constante dos Tubarões Tigre na costa da ilha pode ser compreendida ao se analisar as suas características: o animal, que pode chegar a medir até 5,7 metros em idades avançadas, é o que podemos chamar de um "comedor de lixo", se alimentando não apenas dos descartes da atividade de pesca pela população de Fuvahmulah mas também metal e outros tipos de materiais artificiais jogados na água. Apesar de seu tamanho e surpreendente variedade de presas naturais (crustáceos, focas, tartarugas, lulas, pássaros e mesmo tubarões menores), o animal acaba muitas vezes por ser mais caça do que caçador. Fora o predador natural que ele encontra nas Orcas, o Tubarão Tigre é ainda mais especialmente considerado ameaçado pela pesca humana, principalmente em busca da remoção de suas barbatanas para o comércio.
Se formos colocar em contraste, os resultados são reveladores. Em um único exemplo recente de apreensão, em junho de 2023 foram encontradas 28,7 toneladas de barbatanas e nadadeiras no Brasil, resultando em uma estimada morte de 10 mil tubarões no total. Enquanto isso, em todo o ano de 2022, um total de 57 agressões "não-provocadas" de tubarões foram registradas contra humanos. Destas, apenas 5 resultaram em fatalidade. Olhando por este ângulo, o medo dos humanos quanto à agressividade dos tubarões chega a ser irônica. Em contraste, abelhas matam uma média de 67 pessoas por ano, apenas nos Estados Unidos. Crocodilos matam cerca de 1000 pessoas por ano mundialmente. Acidentes de trânsito matam 3700 pessoas no mundo todo. Por dia.
Ainda assim, um recente caso de ataque fatal na costa do Egito por parte de um Tubarão Tigre vitimando um turista (o primeiro registrado no ano de 2023) reforçou o preconceito contra esses animais. A análise da relação entre a quantidade dos ataques, assim como o contexto da invasão de território de uma espécie a outra, pouco importam, apenas culpabilizar o caso isolado. É por causa desse cenário que entram em cena a Morganna, a Sereia Guardiã, e a ilha de Fuvahmulah.
Morganna, conhecida como a Sereia Guardiã, começou sua jornada com o sereismo quando ainda era criança. Com 1 ano de idade já aprendeu a nadar e a partir dos 7 anos passou a competir em campeonatos locais, além de usar pela primeira vez snorkel e nadadeiras. Aos 16 fez seu primeiro curso de mergulho. Hoje Morganna é freediver, além de também rescue diver PADI. Fascinada por sereias, e percebendo a ausência delas no cenário brasileiro, fundou em 2021 sua própria marca de caudas de sereia funcionais, realistas e de qualidade. Entre seus clientes estão as maiores Sereias do Brasil, o Aquário de São Paulo, a AquaRIO e diversas escolas de mergulho. Além do universo mitológico, Morganna é apaixonada pelos gigantes do mar, entre eles, os tubarões. Foi pensando em uma viagem de mergulho às Maldivas que o projeto Tubarão Tigre nasceu em sua mente.
Sabendo das características únicas da ilha de Fuvahmulah, Morganna teve a ideia de fazer um ensaio, subaquático, como sereia, junto aos Tubarões Tigre. Usar da magia e da fantasia proporcionadas pela imagem do sereismo como forma de conscientizar: os tubarões não são seres violentos comedores de humanos se não provocados. Eles são predadores que irão buscar se aproveitar de situações para conseguir comida fácil. Procurado para viabilizar o projeto, o Fuvahmulah Scuba Club demonstrou precaução extrema quanto aos planos. Apenas com o máximo de planejamento, preparo e organização o mergulho e o ensaio seriam autorizados.
O time era encabeçado por Irina Britanova, cuja experiência no assunto já pode ser atestada pelo seu apelido de "Tiger Mama" perante os locais, e junto dela estava Peter Britanov, especialista na área de mergulho de segurança com tubarões. O biólogo perito neste tipo de animais, Nikita Kornilov, integrava a equipe trazendo um auxílio crucial nas precauções com base em sua expertise. Erika Beux, talentosa fotógrafa e mergulhadora experiente, foi responsável por documentar as imagens do projeto. E por fim Fernando de Carvalho, médico com experiência em mergulho de tubarões e cinegrafista, registrou o making of de toda a empreitada.
A própria cauda de sereia escolhida por Morganna para este ensaio foi especialmente pensada com foco na segurança do mergulho, além de toda a simbologia do conceito ao qual o projeto se propõe. Diferente dos designs mais tradicionalmente usados em suas linhas de produto, bastante coloridas e evocativas da magia e fantasia representadas pelas sereias, este modelo, a cauda Rekin, possui uma estampa mais próxima das cores e padrões dos próprios Tubarões Tigre, evitando assim atiçar demais os sentidos e a curiosidade do animal enquanto embaixo da água. Além disso, a elaboração dela foi inspirada em lendas de divindades das mitologias aborígenes, sinais de boa sorte e prosperidade. A Rekin, além de respeitar os animais em seu habitat natural, também os honra.
Com todas estas precauções asseguradas durante o planejamento do projeto, o mergulho foi finalmente autorizado e pôde então passar para a fase de execução.
A estrutura dos mergulhos de tubarões em Fuvahmulah segue uma agenda e uma logística específicas, tanto para o controle das operadoras quanto da quantidade de isca utilizada. O ponto de mergulho é localizado na entrada do porto, onde barcos circulam constantemente, por isso os mergulhadores precisam descer no mar aberto, um pouco mais além, e nadar 300 metros até chegar ao local de alimentação. Nesse momento os mergulhadores de segurança se posicionam e o alimentador sinaliza para o barco jogar a isca, que só entra na água após todos os mergulhadores recreativos estarem posicionados. Morganna esteve na ilha durante cinco dias, nos quais realizou dois destes mergulhos por dia, a fim de conhecer o local, se familiarizar com as suas características, comportamento dos tubarões e praticar os detalhes para o dia do ensaio.
Uma dessas práticas envolvia treinar o uso e a quantidade do lastro, responsáveis por ajudar a manter flutuabilidade neutra na água, mesmo com uma cauda de sereia. Morganna não costuma trabalhar com o equipamento quando usa cauda, mas certos detalhes deste mergulho o tornavam necessário: o uso de oxigênio durante o ensaio faria com que ela ficasse mais flutuante, além do local possuir uma forte corrente de recife. Equacionar todos estes fatores se provou um verdadeiro desafio, mas se adaptar é sempre uma melhor opção comparada a desistir. Foi decidido então que, ao invés de nadar solo, Morganna seria carregada e posicionada durante todo o processo, evitando acidentes quanto a essas variáveis, e trazendo maior previsibilidade ao ensaio.
A escolha de um local específico para as fotos também não veio sem desafios. Das duas rochas presentes na área do mergulho, durante o período em que Morganna esteve treinando no local, ambas apresentavam perigos imprevistos: um venenoso Peixe-Leão fazia morada em uma delas, assim como duas Moreias que disputavam território ali. Além deles, Peixes-Escorpião faziam morada em diversas fendas de ambas as pedras. Morganna precisaria se segurar em uma das rochas durante o ensaio para lidar com a correnteza, mas estes imprevistos, especialmente pois Morganna não conseguia enxergar devido à ausência de máscara, traziam mais um desafio ao projeto.
Chegada a hora do mergulho em si, a equipe iniciou o processo como os outros mergulhos recreativos do local. Morganna estava com sua cauda Rekin, máscara e cilindro de oxigênio próprios, pois se sentiria mais segura em usar seu próprio equipamento Assim, foi carregada pelos mergulhadores de segurança até o ponto ideal escolhido para o ensaio. O cilindro foi retirado de suas costas e posicionado escondido atrás de uma das pedras, para não aparecer nas fotos. A sereia teria acesso à mangueira de dois metros de tempos em tempos, entre fotos, para otimizar o processo.
O protocolo de segurança durante o ensaio era bastante claro: um mergulhador de segurança ao menos deve vistoriar cada visitante, para avistar e proteger dos tubarões. Irina, Peter e Nikita cuidaram destes papéis. Também é especificado que, se mais de cinco tubarões se encontrarem no local simultaneamente, o mergulho precisa ser abortado imediatamente. Por sorte, em nenhum momento mais de três estiveram presentes ao mesmo tempo durante todo o processo. Deles, apenas uma jovem fêmea parecia mais ouriçada com toda movimentação, mas por característica da curiosidade comum em sua idade.
Em certo ponto um dos tubarões também se sentiu atraído pelo cilindro de oxigênio de Morganna, e se aproximou para analisar o objeto brilhante. Após a insistência do animal com o objeto, Peter pegou o cilindro e, sem ter outro local melhor para o posicionar, passou a segurá-lo ao lado da sereia durante o resto do ensaio. A experiência de Peter com tubarões é aparente, sua tomada de decisões é ágil e ele sabe lidar com os animais como um especialista. É quase como se o respeitassem.
A proximidade dos mergulhadores de segurança em relação à sereia era um leve empecilho na logística do ensaio fotográfico, especialmente de Peter com o cilindro de oxigênio, já que com a lente grande-angular da câmera de Erika Beux eles constantemente apareciam no frame. Qualquer proximidade de um tubarão já colocava um deles imediatamente no foco da câmera, entre Morganna e o animal. Mas ainda assim, independente disso, o protocolo seguiria sendo cumprido à risca até o final do mergulho, pois a segurança permanecia sendo a principal diretriz do projeto.
Chegado o final da meia hora de mergulho, a equipe se preparou para a subida. Morganna, guiada durante todo o processo, já se sentia exausta, com os olhos ardendo, mas feliz e realizada. Foi novamente vestida com sua máscara e cilindro e, ao realizarem a parada de segurança de três minutos antes de emergirem à superfície, já perceberam que o próximo grupo de mergulhadores era o primeiro público do ensaio, observando a sereia que nadava com tubarões e fazendo seus próprios registros. A magia já estava acontecendo ali mesmo, ao vivo, antes mesmo de voltarem ao barco.
Já a bordo e retornando para o litoral a euforia de toda a equipe era evidente em forma de comemoração. Uma mistura de orgulho e satisfação pelo feito atingido, como também de incredulidade com a experiência que tiveram momentos antes. O processo do mergulho foi de grande aprendizado para todos, e logo já debatiam o que poderiam fazer de diferente no caso de um segundo ensaio: experimentar novos pontos no cenário, novos ângulos… Mas de qualquer maneira o resultado já havia sido um sucesso.
E assim o Projeto Tubarão-Tigre se concluiu, mantendo fidelidade ao conceito que teve desde o princípio. Mostrar que tubarões não são feras agressivas, inimigos e predadores dos humanos, mas sim animais majestosos que, se respeitados e compreendidos como merecem, podem conviver em paz e harmonia com todos aqueles que são apaixonados e também querem compartilhar dos mares e oceanos. A empreitada ilustra bem os valores que Morganna sempre prezou quanto ao sereismo, a ideia que sempre defendeu de que "sonhos existem para ser realizados", e colocou à prova o eterno processo de autossuperação exigido de ser uma sereia. Sempre colocando em primeiro lugar, claro, a necessidade imprescindível de se ter total domínio sobre aquilo que for necessário, com estudo, preparação, equipamentos e equipes profissionais. Que a magia e a fantasia proporcionados pela imagem de uma sereia e um Tubarão-Tigre nadando juntos, pacificamente, na vida real, possam servir para conscientizar a todos.